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Como a pandemia aprofundou a desigualdade racial no Brasil na saúde e na economia

Autor: Marcella Fernandes Data da postagem: 21:00 31/12/1969

“A desigualdade racial mata muito mais e deixa muito mais uma parte da população vulnerável. A gente tem um problema muito grande no País que criou uma grande distância entre grupos”, afirma sociólogo.

Em 16 de março, a primeira vítima da covid-19 no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica de 63 anos que se contaminou após sua patroa voltar de uma viagem à Itália, então epicentro da epidemia. Esse episódio é um símbolo da desigualdade no Brasil aprofundada nos últimos meses, de acordo com dados do próprio governo e pesquisas sobre a epidemia no País.

Antes da pandemia de covid-19, a população negra já estava em situações de maior vulnerabilidade social. A renda era menor e a participação nos postos informais era maior em comparação aos brancos. Com a crise sanitária, as diferenças se agravaram. Os principais indicadores do Ministério da Economia e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que pretos e pardos, que representam 56,8% dos brasileiros, foram mais atingidos pelo desemprego e pela precarização no trabalho.

“A desigualdade racial mata muito mais e deixa muito mais uma parte da população vulnerável... A gente tem um problema muito grande no País que criou uma grande distância entre grupos”, afirma o sociólogo e especialista em desigualdade e trabalho Mario Rogério, diretor de pesquisa do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Para Marjorie Nogueira Chaves, coordenadora do Observatório de Saúde da População Negra (POPNegra), da UnB (Universidade de Brasília), a morte da empregada doméstica é emblemática “para a gente entender o desenho e a perversidade com que essa população é tratada no seu cotidiano e principalmente numa crise tão grave para a nossa história”.“O racismo como estruturante das relações sociais também constitui um dos determinantes no processo de adoecimento e morte”, completa.

Na avaliação da pesquisadora, a crise sanitária, assim com a crise econômica, evidencia a discussão sobre a “necropolítica”, em um contexto em que a oferta de serviços públicos de saúde para a população negra já era deficitária. ”É pensar a lógica de quais corpos valem mais em uma sociedade e quais corpos não têm valor e podem ser descartados pela ação do Estado ou pela falta de ação do Estado”, analisa Chaves.

"O racismo como estruturante das relações sociais também constitui um dos determinantes no processo de adoecimento e morte." Marjorie Nogueira, da UnB

O novo coronavírus chegou ao Brasil por meio de um morador de São Paulo após uma viagem à Europa. Ao longo dos meses, o perfil das vítimas da epidemia mudou. Na semana encerrada em 10 de abril, a população branca representava 73% das internações e 62,9% dos óbitos. Cerca de um mês e meio depois, a população negra passou a representar 57% dos óbitos, enquanto a branca representava 41%, apontou pesquisa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) publicada em outubro.

De acordo com o estudo, “a pandemia apresenta sua face mais cruel” nas periferias e favelas. Um exemplo é o bairro de Brasilândia, em São Paulo, onde taxas de contaminação e óbitos superaram as regiões centrais da cidade no fim de maio. 

Marjorie Nogueira, da UnB, lembra que chamou atenção “o fato de que entre 11 e 26 de abril a quantidade de pessoas negras que morreram pela doença  quintuplicou”. “Naquele boletim [do Ministério da Saúde] já era possível perceber que havia uma discrepância em relação principalmente às mortes”, afirma.

Há uma precariedade de dados oficiais sobre a cor da pele, outro ponto criticado por pesquisadores. De acordo com balanço mais recente do Ministério da Saúde, no total de casos confirmados de covid-19, prevalece a cor branca (35,3%), seguida da parda (34%), preta (4,8%), amarela (1,1%) e indígena (0,3%), porém 24,6% dos registros não têm essa informação. Já em relação aos óbitos, 37,1% são pardos, 33,9% brancos, 5,5% pretos, 1,1% de cor amarela, 0,4% indígena e não há informação sobre 7,3% das vítimas.

Além dos números sobre a doença, o estudo da Fiocruz destaca outros indicadores da desigualdade socioeconômica no Brasil que impactam na saúde da população: 12,5% dos negros e 6% dos brancos vivem em locais sem coleta de lixo no País; 17,9% dos negros e e 11,5% dos brancos não têm abastecimento de água por rede geral; e 42,8% dos negros e 26,5% dos brancos não possuem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial em casa.

Sem condições sanitárias adequadas, a população negra também tem grande participação no conjunto dos trabalhadores considerados essenciais, especialmente nos setores de serviços, alimentação e saúde. Pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicada neste mês sobre o impacto da pandemia na desigualdade racial no mercado de trabalho destaca como é recorrente a presença de pretos e pardos em “atividades operacionais e de menor remuneração”.

“Não raro esses segmentos, além de vivenciarem as consequências de vínculos precários, também reúnem menos recursos materiais para se protegerem da covid-19, dadas as condições de habitação ou uso intensivo de transporte público. Caso sejam acometidos pela doença, também tendem a vivenciar maior dificuldade de tratamento, dadas as restrições econômicas para o acesso à saúde (medicamentos e cuidados)”, afirma a pesquisa.

São 12,5% dos negros e 6% dos brancos que vivem em locais sem coleta de lixo no país; 17,9% dos negros e e 11,5% dos brancos não têm abastecimento de água por rede geral.

Negros são mais afetados pelo desemprego 

O desemprego vinha piorando no Brasil nos últimos anos e ensaiou um início de recuperação desde 2018, mas voltou a crescer com a pandemia. De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego entre os pretos aumentou em 2,6 pontos percentuais (p.p.) - chegando a 17,8% - e a dos pardos, 1,4 p.p na comparação do primeiro para o segundo trimestre de 2020, alcançando 15,4%. Entre os brancos, a alta foi de 0,6 p.p, para 10,4%. A taxa geral do País ficou em 13,3%.

Já o nível de ocupação, que mostra o porcentual de pessoas ocupadas em relação às pessoas em idade de trabalhar, caiu 6.9 p.p. entre pretos no mesmo período comparado, contra 6.1 p.p. para pardos e 4.9 p.p. para brancos.

Uma das explicações para os números é a grande participação de negros em setores mais atingidos pela interrupção de atividades, como comércio, segurança em eventos e construção civil. Segundo dados do IBGE publicados em outubro, na construção civil, por exemplo, houve uma queda de 1,6 milhão de vagas — equivalente a 19,9% na comparação com o ano anterior.

Levantamento feito pelo pesquisador do CEERT com dados antes da pandemia mostram uma presença predominante de negros justamente nessas áreas. Na construção, pardos eram 50,2% dos vínculos trabalhistas, acima dos 28,7% de brancos.

“O desemprego cresceu, mas não cresceu igual para todos os grupos porque quem estava nesses grupos foram os mais prejudicados. E são grupos que pagam os piores salários. A construção paga salários baixos, majoritariamente para negros”, afirma o pesquisador Mario Rogério. “Quando a gente coloca a lupa e tem informação sobre raça a gente consegue iluminar o quanto a desigualdade está impactando”, completa.

O indicador de desalento - quando as pessoas deixam de procurar emprego - também muda de acordo com a cor da pele. Segundo a Pnad-Covid publicada pelo IBGE em setembro, estava em 7% para pessoas de cor branca e em 11,3 % das pessoas de cor preta ou parda.

"Quando a gente coloca a lupa e tem informação sobre raça a gente consegue iluminar o quanto a desigualdade está impactando." Mario Rogério, do CEERT

Pesquisa do Ipea mostra que 36,9% da população acima de 14 anos fora da força de trabalho, cerca de 28 milhões de pessoas, encontrava-se na situação de desalento. Desse conjunto, cerca de dois terços (65,3%) correspondiam a indivíduos negros. Entre os entrevistados, 67% atribuem essa condição à pandemia. ”É uma sobreposição de precariedades. É uma população que em situação normal sofre com a desigualdade e, quando vem uma crise, os impactos sobre essa população ainda são maiores”, afirma Sandro ?Pereira Silva, um dos responsáveis pela pesquisa.

O afastamento dos postos de trabalho afetou mais intensamente as mulheres negras. 

O afastamento dos postos de trabalho afetou mais intensamente as mulheres negras. Apesar de corresponderem a 21,5% do total de ocupados, elas representaram 30,9% das pessoas afastadas temporariamente do trabalho, de acordo com a pesquisa.

Esse grupo inclui tanto trabalhadores formais que receberam algum tipo de remuneração no período de afastamento - como seguro-desemprego - quanto outros perfis, como diaristas ou funcionários de salões de beleza, por exemplo.

Em 2019, a taxa de desocupação para a mulher negra era 16,8%, o dobro da taxa de desocupação para o homem branco, em 7,7%, ressalta Mario Rogério, do CEERT. O pesquisador também chama atenção para a taxa de desemprego de 18,2% para mulheres negras, em função principalmente das demissões de trabalhadores domésticos.

O total de pessoas ocupadas no trabalho doméstico passou de 4.458 mil, em maio, para 3.946 mil em julho de 2020, uma perda estimada de 11,5% de postos de trabalho em 3 meses. O grupo é composto majoritariamente por mulheres (92,3%), entre as quais 67,7% são negras, com ampla e crescente atuação da categoria na modalidade de diaristas, segundo pesquisa do Ipea.

Mercado informal

Antes da crise sanitária os negros eram 54,7% dos trabalhadores disponíveis para o mercado de trabalho contra 38,8% com vínculos formais, com carteira assinada, segundo estudo do CEERT.

De acordo com o IBGE, o número de trabalhadores informais teve queda de 9,4% em 5 meses de pandemia. Dados de 2019 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostram que os brancos representavam 38,92% do total de trabalhadores formais e pretos e pardos somavam 32,22%.

Dados de 2019 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostram que os brancos representavam 38,92% do total de trabalhadores formais e pretos e pardos somavam 32,22%.

O levantamento do CEERT também chama atenção para outros indicadores de raça e de gênero. Antes da pandemia, 56% das mulheres negras recebiam abaixo de 1,5 salário mínimo, enquanto os homens brancos representam 23,3% nesta mesma faixa. 

As ocupações com vínculos mais frágeis foram as mais afetadas pelo distanciamento social. Empregados sem carteira do setor privado e por conta própria representavam 9,6% e 29% dos ocupados e, respectivamente, 11,8% e 35% dos afastados devido ao distanciamento social, de acordo com o estudo do Ipea.

Os números variam de acordo com o setor. Alojamento e alimentação foram responsáveis por 8,5% dos afastamentos temporários, mas correspondem só a 5,6% do total de ocupações. “Grande parcela dos afastamentos ocorreu sem qualquer remuneração”, destacam os pesquisadores do Ipea.

O trabalho remoto foi a realidade para 17,6% dos ocupados brancos e para apenas 9% dos negros nessa situação. Só cerca de 1/3 do total de trabalhadores ocupados em atividade remota era composta de trabalhadores negros, segundo o levantamento.

Auxílio emergencial

Fonte de renda para os trabalhadores informais impossibilidades de trabalhar na pandemia, o auxílio emergencial foi um dos principais fatores para reduzir as previsões de queda do PIB em 2020, que deve ficar em torno de 4,5%. Também foi essencial para reduzir a desigualdade de renda.

O fim do benefício em 2021 pode reverter esse cenário e aumentar desigualdades de renda no Brasil, que crescia desde 2016.  “O auxílio emergencial está cumrpindo um papel muito importante para garantir um fluxo de renda para essas pessoas em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho”, afirma Sandro ?Pereira Silva, do Ipea.

Em julho, 4,5 milhões de domicílios (cerca de 6,5% do total) viviam exclusivamente com recursos do auxílio emergencial. “Considerando que os efeitos da pandemia ainda se mantêm e há o risco de uma segunda onda, o fim do auxílio pode ser uma situação desastrosa porque muita gente vai ficar sem renda”, alerta o pesquisador.

Há também um efeito indireto porque o benefício ajuda a movimentar a economia nas cidades e compensa parte das perdas salariais. Sem o auxílio, haverá uma queda na atividade econômica.

Dos 10 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos de idade que deixaram de frequentar a escola sem ter completado a educação básica, 71,7% são pretos ou pardos, de acordo com a Pnad Contínua da Educação 2019.

Acesso à educação

O prejuízo para os alunos - especialmente da rede pública - com a interrupção das aulas também é mais uma camada de aprofundamento das diferenças já existentes. Dos 10 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos de idade que deixaram de frequentar a escola sem ter completado a educação básica, 71,7% são pretos ou pardos, de acordo com a Pnad Contínua da Educação 2019.

O motivo para parar de estudar é a necessidade de trabalhar, de acordo com a maioria das respostas. A pesquisa anual do IBGE também mostra que jovens negros passam, em média, quase 2 anos a menos na escola (8,6 anos) do que brancos (10,4).

Sem as aula presenciais, o ensino remoto passou a ser adotado com limitações. A falta de acesso à internet ou de uma infraestrutura adequada para estudar em casa também impacta mais a população negra. “É mais um fator que explica essa sobreposição de prioridades da população negra. Ela se insere no mercado de trabalho de forma precária, tem acesso a serviços públicos de forma precária, a infraestrutura social disponível, como domicílio, transporte público, internet, é precária por causa da dificuldade de renda. É um ciclo vicioso da pobreza que dificulta cada vez mais essa população conseguir sair dessa armadilha”, afirma o pesquisador do Ipea.

Já para o sociólogo Mario Rogério, apesar de ainda haver déficit de escolaridade, são outros fatores que mais impactam nos indicadores de desemprego e na diferença salarial entre brancos e negros. “Tem pouco a ver com formação e muito mais a ver com as escolhas de dia a dia que ninguém se pergunta por que faz, por que escolhe iguais. Os iguais indicam os iguais porque têm a referência deles como uma referência de sucesso. E aí é uma repetição das desigualdades”, afirma.

"Os iguais indicam os iguais porque têm a referência dele como uma referência de sucesso. E aí é uma repetição das desigualdades." Mario Rogério, do CEERT.

De acordo com o pesquisador, em setores majoritariamente brancos chega a 70% o número de funcionários que souberam da vaga de emprego porque um familiar ou amigo trabalha na empresa. 

Em meio ao agravamento das desigualdades, Rogério acredita que os debates promovidos sobre questões raciais em 2020 - tanto com os protestos contra a violência quanto no financiamento de campanhas - podem contribuir para construir um futuro mais igualitário. “Esse não é um tema do gueto negro. Esse é um tema para a população criar um País para todos”, afirma o pesquisador do CEERT.